O Reino de Nzambi Mpungu
*Tata
Ngunz'tala
![]() |
Tata Ngunz'tala |
Mas é importante entender este
fragmento de mito que eu parafraseei para atualizá-lo (pois o mito deve se
atualizar tanto na sua forma de ser contada, como nas significações das verdades
primordiais que ele vela), como algo figurado e até mesmo internalizado no ser
humano. A separação é simbólica e o elo que deve ser feito pelos ancestrais e
divindades também é interno. Qual o segredo da separação? ela se deu foi no
coração de pedra dos humanos, quando acharam que poderiam manipular a divindade
e quando queriam um Deus à sua semelhança e não ser semelhança Dele. Mas as
marcas divinas estão registradas na pedra do seu endurecido ser pela ilusão da
existência material (ego).
O reino de Deus se muda para um lugar
que para se ter acesso, só pela ancestralidade ou pela divindade. Olha o quão
rico é esta passagem. A ancestralidade é o nosso próprio eu, que resulta da
história, do sangue, da carne e da espiritualidade dos que já se foram, ou seja,
para se chegar à Sanzala dia Nzambi, só através do retorno, do anterior, da
situação pretérita: voltando à condição de antes da separação. Ou então
pela Divindade. O que é uma divindade senão uma manifestação diversa da
natureza UNA de Deus? Então os bantu temiam os Mukisi/Nkisi (que neste
nível mitológico eram seres para serem temidos, pois alguns deles, inclusive,
tinham muitas cabeças e podiam ser destruidores), mas é pelo medo eles que
começaram a agradá-los, a ponto de se tornarem seus íntimos e terem suas
manifestações propiciadas em seus próprios corpos. Então, a fase de se temer
(ter medo) de Deus foi algo muito forte e importante na história da humanidade.
O Mukixi/Nkisi poderia ser mau ou bom, por isso cultuá-lo era importante.
Ora pois se esta não era a natureza do humano? Não poderia o humano agir de
maneira bondosa ou maldosa? Não era somente uma projeção do que lhe ia no
coração? Então agradar estes seres era como se apaziguasse a si próprios. Ou
seja, se quero que estes seres sejam bondosos para comigo, também deverei
ser bondoso com eles (com a natureza divina que eles manifestam, mesmo que seja
considerada má), e com a memória dos meus antepassados, e por fim comigo mesmo
e com os meus semelhantes e diferentes, pois todos viemos de troncos ancestrais
e estamos ligados a uma manifestação da natureza divina que podemos
chamar de Divindade.
Outra lição que este fragmento de mito
nos ensina é que o reino de Nzambi/Deus está dentro de nós mesmos. O caminho é
interno e interior, e cada um de nós é responsável por contatá-lo e por
revelá-lo no nosso mundo e na nossa geração. É se reconhecer como eterno. Por
que ter um vínculo com a ancestralidade? É que toda vez que lembramos de nossos
ancestrais divinizados ou não e dos nossos antepassados, estamos reafirmando a
nossa fé na eternidade da vida e dizendo que sabemos que o vivo morre, mas a
vida jamais. Quando derramamos uma simples gota d'água no solo em memória dos
nossos ancestrais estamos dizendo que acreditamos na vida e num Deus vivo, que
é Deus de vivos e não de mortos.
Quando cultuamos uma divindade,
estamos afirmamos que sabemos que só existe uma fonte criadora no universo, que
é UNA, mas se manifesta diversamentemente, e que a nossa natureza também é
divina, já que tem como origem única fonte de consciência e dr criação.
Então buscar os ancestrais ou uma
divindade para se alcançar a Nsanzala dia Nzambi (A aldeia de Deus, o Reino de
Deus, a Dimensão espiritual suprema da consciência divina pura), é fazer um
caminho interior e não exterior. Não é só o rito que nos proporciona isso,mas a
transcendência deste rito, é a consciência da prática ritualística e a fé
revelada em cada ação ritualística ou litúrgica.
E como se revela este Reino?
A maioria das religiões e religiosos
nos diriam que é pela prática desta ou daquela religião, pelo esforço de
proselitizar outros e outras. Mas a visão real do Reino de Deus nos ensina
que cada expressão religiosa como instituição humana é controlada
pelo ego que expulsou Deus do mundo, e como Instituição se acha dona, detentora
única e única merecedora do reino de Deus. Só que nós como indivíduos devemos,
mesmo tendo nossas religiões como espaço de comunhão e socialização das
experiências vividas do lado de cá da vida e das crenças em comuns, temos que
realizar este Reino em nós mesmo e sermos livres e libertos.
Livres e libertos de que?
Do ego que nos engana dizendo que o
Reino de Deus está longe, ou que está aqui ou ali, e que para alcançá-lo
precisamos pertencer a esta ou aquela tradição religiosa, e temos que
alcançá-lo, ou quando julgamos ter alcançado temos que "levar" outras
pessoas para o reino divino. Ora, nesta perspectiva a própria religião se torna
o reino de Deus. Só que o Reino de Nzambi está muito
além de tudo isso. Quem realmente o alcançou está livre.
Tocar o reino de Deus é algo interno e
acima de tudo uma realização deste Deus Pai e Mãe em nós mesmos. É
uma experiência pessoal, única e intransferível. Quem tocou o reino de Deus (o realizou
em si mesmo), é de fato alguém liberto.As ansiedades, as dúvidas, os medos,
os vícios e vicissitudes desaparecem. É neste patamar que se consegue
superar qualquer dependência, seja química, seja física, seja psicológica.
É neste nível que podemos até ficar
tristes e/ou alegres com os acontecimentos externos, mas nunca infelizes, pois
alguém que vive o Reino de Nzambi é feliz em si mesmo, porque já vislumbra as
coisas futuras, a eternidade, as diversas dimensões espirituais e a
possibilidade de crescimento constante na espiritualidade. Não existe mais
apegos, nem espadas, nem escudos. O reino de Deus não precisa de defesa nem
luta para ser implantado. É uma conquista individual e interna, que sempre
resulta em paz, e compaixão, e beleza, e compreensão.
Alguém que vislumbra este reino, tem uma
força interior capaz de superar todos os desafios e de usufruir de tudo que a
vida pode nos proporcionar do lado de cá, sem dependência, sem apego, sem
julgamentos com os que ainda não o alcançaram, e sem oferecer
condições externas para guiar outros, pois descobriu que o Reino de Deus
está disponível para todos e todas.
Quem já ouviu os primeiros sons deste
reino não se contenta mais em praticar uma religião como obrigatoriedade
simplesmente, sem que haja uma reforma íntima, que vai se revelar pelo dia a
dia na sua honestidade para com todos e todas, no amor revelado e na
consciência divina manifestada de modo pessoal e na tolerância amorosa
para os que ainda nem ouviram destas boas novas. Não vai se contentar em
cumprir todos os ritos e saber de cor todos os mitos ou palavras sagradas de
sua religião, sem que queira, anseie, busque incansavelmente a realização deste
Reino em si mesmo.Que nossa vida seja um canal de
manifestação do Reino de Nzambi/Deus, onde quer que estejamos.
Religiosos ou não, tristes ou alegres,
mas que nossa ação, nossa palavra, nosso agir revele esse maravilhoso
reino com todas as suas potencialidades e assim abriremos de volta o caminho
para que possamos viver juntamente com Nzambi/Deus, independente da dimensão
que estejamos as pedras montanhosas sirvam de escada para que este Reino
desça até nós o nós subamos até ele, e não como prova da separação entre Deus e
esta dimensão que nos encontramos hoje. Por isso que o mito fala das
pegadas deixadas para traz. Deus deixou pegadas em nosso ser para nos mostrar o
caminho.
Foi como se dissesse o Ego nos
separou, mas quando estiverem prontos, o caminho é por aqui, internamente, pelo
Deus que continua morando em vós pelo Reino sempre revelado, mas velado
para que não seja novamente maculado pelos que ainda não estão prontos/prontas
para desfrutá-lo e implantá-lo onde quer que estejam. Sigam os passos dos vossos ancestrais
e das divindades reveladas. Estas marcas estão em vós e podem servir de escada.Subamos!
Sacerdote
do Candomblé Angola/Congo - Ndanji Tumba Junsara, iniciado em 1997.
Tata
Nkisi/Mukixi da Nzo mona Nzambi em Aguas Lindas de Goiás - GO
Pedagogo, Teólogo e Servidor Público.